quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

o todo e as partes que não tinha

eu sou o lirismo do Bandeira, as agonias do José de Drummond, os olhos perspicazes de Lispector, o mistério da Agatha, o terror de King, a ironia ácida de Machado e a sutileza de Wilde, o exagero de Shakespeare. eu sou o ceticismo de Caeiro, o caos moderno do Álvaro de Campos, as múltiplas faces de Pessoa. eu sou a perfeita desorganização de Saramago.
eu sou a decepção que fez crescer, as lágrimas que se transformaram em risos, a raiva que virou indiferença; sou a mágoa que se converteu em marca, a dor que mudou a vida, o perdão que foi concedido e recebido.
eu sou as cores tristes de Malfatti e as vibrantes de Romero. sou uma das bailarinas de Degas, a distorção de Picasso, a moça com o copo de um dos quadros de Renoir. eu sou a provocação de Magritte e a loucura de Dalí, a desconstrução de Tzara e a magnificência de Monet. eu sou o delírio febril de Goya.
eu sou a escrita nas madrugadas, os inseparáveis fones de ouvido, as cartas guardadas na caixa. eu sou as lembranças do coração.
sou o som de um piano, o tom de um saxofone solitário.
eu sou o tempo que voa e o tempo que se arrasta. eu sou a melancolia de uma tarde de domingo, a expectativa pelo grande dia, o sentimento de perda e da impotência diante dela. eu sou a mudança, o retorno, o surgir abrupta e novamente. eu sou a inquietude e a mansidão.
eu sou os olhos baços do velho e o brilho dos do jovem. eu sou o desejo irrepreensível, a mão que procura a outra no escuro, boca cálida e o suspiro incontido. sou o abraço reconfortante e as palavras que sonhei em ouvir... e que ouvi.
eu sou o primeiro contato e o último adeus. sou a dança sob a chuva, o sorriso indisfarçável, os braços abertos e a música que fala por mim. eu sou a incerteza do futuro e a certeza do meu plano. sou um rompante.
eu sou a inspiração de um dia cinza, a poesia lida no fim de tarde, a contracultura espalhada pelas ruas em graffitis.

eu só sou no todo, e o todo está em mim.
só existo com o todo, e o todo não teria razão de existir se não fosse para me completar e me refazer a cada instante.
a parte que vem e a parte que vai de mim. as partes que eu não tinha, e que passei a ter; as partes que não existiam e que surgiram por minha causa.
uma parte, várias partes.
infinitas partes que eu não tinha, e agora tenho.
infinitas coisas que sou e que, um dia, deixarei de ser.

Nenhum comentário: